segunda-feira, 22 de novembro de 2010

5o Encontro: estímulos à escrita

Dedicamos este encontro exclusivamente à produção a partir de estímulos e dialogando com os impulsos internos. Começamos com o exercício surrealista "Cadáver Delicioso" onde cada um da roda escreve uma frase/verso tendo acesso apenas a frase/verso anteriormente escrita. Depois realizamos exercícios de escrita automática (sem música, com música, a partir de imagens de quadros de Hopper) e, por fim, assistimos a dois vídeos: um trecho do documentário "Estamira" e o vídeo "Solidão". Ambos colocam o debate sobre o limite entre a poesia/arte e a loucura, entre o irracional e o racional na produção artística, entre o espontâneo e o coordenado na escrita.


quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Exercício poético de Nataly Taccola

Canção do Exílio de Gonçalves Dias versus Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade

Jesus que amava Maria que amava José. Jesus que ama Paulo também ama Judas que matou Jesus que me amava, mas Judas não sabia,

Minha terra tem paulada

tem porrada

tem porrete

Nossos vácuos não tem flores

Sabiá cantou as dores

Onde manda os senhores

Jesus me ama Judas

Exercício de síntese poética


Não digas onde acaba o dia.

Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.


(Cecília Meireles)


#


Através das palavras

Encerrou-se em si mesmo

Se executou

Não sabia esse homem

É um homem

Feito de coisas misteriosas


(Nataly Taccola)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Oficina 4 - Metáfora (03/11/2010)

PRIMEIRA PARTE

I. Ex.: O que é metáfora? Como a metáfora aparece na canção a seguir?

Separe os versos que digam respeito à parte “mulher” e os versos que digam respeito à parte “peixe” da sereia. O que essas partes representam?

A Novidade
Os Paralamas do Sucesso
Composição: Torquato Neto / Gilberto Gil

A novidade veio dar a praia
Na qualidade rara de sereia
Metade o busto de uma deusa maia
Metade um grande rabo de baleia

A novidade era o máximo
Um paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia

Ó mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
O, o, o, o...
De um lado esse carnaval
De outro a fome total
O, o, o, o...

E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia

A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado

Ô Mundo tão desigual...
A Novidade era o máximo...
Ô Mundo tão desigual...



II. Quadro da Comunicação (Jakobson)


EMISSOR                           -->                        RECEPTOR
(função emotiva)                                              (função conativa)

                               Referente (função referencial)
                               Mensagem (função poética)
                               Código (função metalinguística)
                               Canal (função fática)


Críticas ao quadro da comunicação. Linguagem como constitutiva e não simplesmente comunicativa (teoria da interação e da análise do dicurso).

A poesia recai sobre a mensagem e sobre o emissor.  


III. EZRA POUND
Fanopeia (imagens)
Melopéia (som, ritmo)
Logopeia (conceito, ideias)

Ex.: Como as duas canções e o poema a seguir trabalham com imagens, sons/ritmos e conceitos?

Alagados / Os Paralamas do Sucesso
Composição: Herbert Viana/ Bi Ribeiro
(...)
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
(...)


Templo (Chico César - Milton De Biase - Tata Fernandes)

Se você olha pra mim
Se me dá atenção
Eu me derreto suave
Neve no vulcão

Se você toca em mim
Alaúde emoção
Eu me desmancho suave
Nuvem no avião

Himalaia himeneu
Esse homem nú sou eu
Olhos de contemplação

Inca maia pigmeu
Minha tribo me perdeu
Quando entrei no templo da paixão


Repare na canção acima que a sonoridade frágil do "N" e "E" e de imagens frágeis (nuvem/neve) é explodida pela imagem forte de sonoridade forte de vulCÃO / aviÃO. O som, então, aqui também é sentido.

Nesta canção temos o exemplo de fanopeia (as imagens criadas pelo poeta), a melopeia (o ritmo e as escolhas de consoantes e vogais) e a logopeia (o tema "romeu-julietiano" de quem deixa sua tribo / sua família / suas crenças por um ideal, por uma paixão).



Uma faca só lâmina
(OU: SERVENTIA DAS IDÉIAS FIXAS, 1955)
João Cabral de Melo Neto

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.


IV. Personificação. O cotidiano. O humano.

Ex.:
A moça grandalhona e o prego (em Retrato proletário);
A anciã solitária e as borboletas (em Quanto eu saiba...);
A mala de couro e o pai (em No dia em que...)
representam o que nos três poemas a seguir? São meras pessoas e objetos?


Retrato proletário (William Carlos Williams)

A moça grandalhona sem chapéu
de avental

O cabelo preso atrás, parada
na rua

Um pé com a meia tocando
a calçada

O sapato na sua mão. Olhando
com atenção

Ela arranca a palmilha
para achar o prego

Que a estava machucando.


QUANTO EU SAIBA ELA TALVEZ FOSSE MAIS FELIZ... (Lawrence Ferlinghetti)

    Quanto eu saiba ela talvez fosse mais feliz
                                           que qualquer um
aquela anciã solitária de xale
                     no trem com caixotes de laranja
    com o passarinho manso
                                      no seu lenço
             e sussurrando-lhe
                                     todo o tempo
                                              mia mascotta
       mia mascotta
        sem que nenhum dos excursionistas de
              domingo com seus cestos e garrafas
                   prestasse qualquer
                                               atenção
         e o vagão
                        chiava através dos trigais
              tão devagar que

                                     borboletas

                               entravam e saíam


No Dia Em Que Eu Vim-me Embora
(Caetano Veloso)

No dia em que eu vim-me embora
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás

No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais
Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui
Minha vó já quase morta

Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho

E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava

Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal

Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital…


V. A metáfora e o oculto / o mistério. Metáfora (concreto) x conceito (abstrato).

O poema a seguir conta uma história? As lacunas do texto são intencionais? O que elas criam?

A metáfora na poesia significa também mistério. O hermetismo é o "fechamento" da poesia através de sintaxe, conteúdos e metáforas complexos. 


OSSOS DE BORBOLETA (TARSO M.MELO)

para Régis Bonvicino

mínima (em
ecos magros e
horizontais
de palavras que
imóveis deslizam
e amplificam-se
de sentido a
sentido) uma
incomensurável
tessitura de inevitáveis
outros amanhãs
que (oásis seco: sol
cansado dos hábeis
moluscos e folhas
fartas de músculos)
eleva a sinfonia
das datas a ruído


Se você tivesse que resumir o poema abaixo com um sentimento ou qualquer substantivo abstrato (uma palavra só, que não esteja expressa no poema), que palavra você usaria?


Duas moscas (Charles Bukowski)

As moscas são furiosos tecos de vida;
por que são tão furiosas?
parecem querer algo mais,
parece até que elas
estão furiosas
por serem moscas;
não é minha culpa;
eu sento no quarto
com elas
e elas me provocam
com sua agonia;
é como se elas fossem
nacos de alma perdidos
esquecidos em alguma parte;
eu tento ler um jornal
mas elas não vão me
deixar;

uma parece subir em semicírculos
por toda a parede,
despejando um som miserável
sobre minha cabeça;
a outra, a menor,
fica perto zoando com a minha mão,
sem dizer nada,
subindo, caindo,
chegando pertinho;
que deus põe essas
coisas perdidas sobre mim?
outros homens sofrem imposições do império,
amor trágico…
eu sofro
insetos…
eu espanto a menorzinha
que parece apenas renovar
seu impulso de me desafiar:
ela circula mais rápido,
mais perto, e chega a fazer
um som de mosca,
e a outra, abaixo,
sacando o tumulto no ar,
também, excitada,
acelera seu vôo,
mergulha de repente
num golpe ruidoso
e elas se juntam
circulando minha mão,
arranhando a base
do abajur
até que alguma coisa-homem
em mim
não aguenta mais
o sacrilégio
e eu bato
com o jornal enrolado -
errei! -
batendo,
batendo,
elas explodem em discórdia,
alguma mensagem se perdeu entre elas,
e eu pego a grandona
primeiro, e ela cai de costas
estrebuchando suas patinhas
como uma puta raivosa,
e eu mando ver de novo
com meu taco de papel
que vira uma lambuzeira
da feiúra da mosca;
a pequena circula mais alto
agora, quieta e rápida,
quase invisível;
já não se aproxima
da minha mão novamente;
ela está mansa e
inacessível; Eu deixo

ela ser, ela me deixar
ser;
o jornal, claro,
está arruinado;
alguma coisa aconteceu,
alguma coisa cagou meu
dia,
algumas vezes não é necessário
um homem
ou uma mulher,
apenas alguma coisa viva;
Me sento e olho
a menorzinha;
nós estamos juntos
trançados
- dando voltas e voltas -
no ar
e na vida;
é tarde
pra nós dois.



Exercício:

Faça um poema que combine uma palavra ou ideia de cada uma das colunas (A, B, C):



A
B
C
Sapato
Idoso
Cansaço
Armário
Cantor
Melancolia
Casa
Lixeiro
Barulho
Camisa
Avó
Alegria
Chiclete
Contador
Dor
Mala
Estivador
Ânimo
Ventilador
Prostituta
Solidão
Relógio
Pastor
Ceticismo
Orquestra
Médium
Comemoração
Alicerce
Vegetariano
Fracasso
Rua
Garçonete
Desejo
Ônibus
Enfermeiro
Pressa
Sol
Guarda de trânsito
Sonolência
Carnaval
Manobrista
Glamour
Taturana
Pedreiro
Risada
Máquina de algodão doce
Coroinha
Tédio




Outro exercício:

Cada um deve escrever duas palavras em uma folha de papel e trocar sua folha com a de outros oficineiros. O oficineiro terá que pegar as duas palavras recebidas e "forçar" a criação de uma metáfora (aproximação) entre essas duas palavras. Se não for possível, fazer um poema em que essas duas palavras aparecem.


Alguns outros pontos

- Metáfora: imagem pontual, forçar a barra para que duas coisas diferentes se unam por algum traço de semelhança achado pelo poeta

- Alegoria: imagem continuada, como o Gregor Samsa em "Metamorfose", ou como o "Mito da Caverna" de Platão, ou como os tubarões em “Se os tubarões fossem homens” (Brecht).

- Comparação: metáfora que usa o "como", que explicita que está se comparando coisas diferentes.


- Hipérbole, eufemismo e ambiguidade. A metáfora traria hipérboles (exagerar a semelhança), eufemismos (atenuar as diferenças) e ambiguidades (porque sobrevivem os dois sentidos das coisas comparadas, como as duas intepretações sobre o filho na canção “Meu guri” do Chico Buarque).

- Ironia: dizer uma coisa querendo dizer o seu oposto. Usada em poemas sarcásticos / de maldizer.

- Hipálage: quebra da lógica; seria também uma metáfora; aqui caberiam os poemas do Manoel de Barros): ex. "A moça dormia transparente" (Chico Buarque) e Sinestesia (mistura dos sentidos; ex.: "No cume calmo do meu olho que vê assenta a sombra sonora de um disco voador", Raul Seixas)

- Antropomorfismo: a metáfora entre homem e coisa.

- Digressão (ver “Ossos de borboleta”)

- Paradoxo ("O único sentido oculto das coisas é elas não terem sentido oculto nenhum", Pessoa). O paradoxo seria a metáfora dos extremos. Ver Paralamas e Camões.




SEGUNDA PARTE

As coisas abaixo são mais formais (figuras de sintaxe, com exceção do pleonasmo).

- Hipérbato (inversões sintáticas; um poema parnasiano ou simbolista aqui, talvez)

- Rima (repetição na terminação dos versos), aliteração (repetição de consoantes), assonância (repetição de vogais), anáfora (repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no início do verso) e redundância (repetição da mesma ideia, como o Poema Brasileiro do Gullar)

Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas
Brincam nos tempos das Berlindas
As vindas vendo das varandas.
(Fernando Pessoa) *aqui tem rimas, aliterações e assonâncias


Ode ao burguês (Mário de Andrade, 1922)
(anáfora, redundância, extrapolação da linguagem, dispersão)

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o èxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"–Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
–Um colar... –Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burgês!...



SONETO 11 (Camões)

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?


---OUTROS TEXTOS---


Se os Tubarões Fossem Homens
Bertold Brecht

Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não moressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.









MANOEL DE BARROS
Uma Didática da Invenção
do "O Livro das Ignorãnças" ed. Civilização Brasileira.

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
Dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

IX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.